O Vandalismo liberta – No Palácio de Saddam Hussein 🇮🇶

  • 08.06.2023 22:45
  • Bruno A.

Ao visitar o palácio abandonado de Saddam Hussein, com vistas sobre as ruínas da lendária Babilónia, o nosso editor depara-se com um espaço degradado, pilhado e vandalizado. Mas sendo este um símbolo de opressão, tirania e ocupação, pode o vandalismo ser um símbolo de liberdade?

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À semelhança de quase todos os da minha geração, bem como das anteriores, também eu fui ensinado que todo o vandalismo é, por natureza, mau, feio e injustificado. Agora, com a imensa sabedoria (note-se a ironia) de praticamente 3 décadas, tenho que dizer que não sei se concordo. E se é verdade que qualquer acto de violência gratuita deve ser sempre reprovado, não deixam de existir situações em que o vandalismo e a destruição podem ser belos, catárticos e, arrisco até dizer, comoventes.

Falo das paredes cravejadas de balas em Sarajevo, que servem até hoje de lembrança ao cerco mais longo da história moderna, ou dos murais de arte urbana que cobrem os muitos telhados e fachadas decrépitas de Valparaíso. Falo também das imagens de 09 de Novembro de 1989, quando dois lados do mesmo povo se uniram e, munidos de martelos e marretas, deitaram abaixo o Muro de Berlim. Como podem ver, o vandalismo e a destruição também podem ter a sua utilidade social.

Lembrei-me disto a propósito da minha visita a Al Hilla, no Iraque. Situada a uns 70 km de Bagdad, esta cidade é conhecida por albergar as ruínas da antiga Babilónia, uma das cidades arqueológicas mais lendárias de todo o planeta. No entanto, num pequeno promontório adjacente a este icónico local arqueológico, um imponente edifício espreita pela neblina desértica. Este é um dos muitos Palácios de Saddam Hussein, estruturas megalómanas construídas um pouco por todo o país, para gáudio e capricho de um absoluto lunático. Embora seja difícil atestar a veracidade destes dados, diz-se que este palácio junto à Babilónia custou vários milhões de dólares, e que Saddam apenas lá esteve por 6 ocasiões. Um verdadeiro elefante branco.

No entanto, é também importante ressalvar que a opinião pública iraquiana está longe de ser consensual em relação a Saddam. Existem os que o adoram e os que o detestam. Os que o odiavam, mas agora conseguem entender a sua utilidade, e os que o adoravam, mas entretanto perceberam a extensão dos seus crimes. Existem ainda os nostálgicos do regime, e praticamente todas as outras posições intermédias. Entende-se. Por um lado, Saddam Hussein e a sua aplicação bastante específica do Socialismo Árabe permitiu, juntamente com as muitas receitas petrolíferas, desenvolver o país e as suas infraestruturas. Foi no “reinado” de Saddam que foram construídas estradas, escolas e hospitais. Como gostamos de dizer cá no burgo, o homem deixou muita obra feita.

Ainda assim, as suas tendências autoritárias, megalómanas e paranoicas apresentam o outro lado da moeda. Opositores políticos eram assassinados e as suas famílias perseguidas, vivia-se num estado de medo constante e os familiares e amigos de Saddam, bem como outros indivíduos próximos do regime, desfrutavam de um estatuto judicial, financeiro e social extremamente favorável face à generalidade da pobre população iraquiana. Se quiserem perceber melhor aquilo de que estou a falar, e caso tenham estômago e inglês para isso, convido-vos a fazer uma pequena pesquisa sobre Uday Hussein, o filho mais velho de Saddam. Garanto-vos: nem Tarantino ou Scorsese seriam capazes de magicar um vilão com tal nível de psicopatia. Se a isto aliarmos o facto de Saddam ter começado duas guerras distintas (Guerra do Golfo e Guerra Irão – Iraque) que não venceu e das quais resultaram as mortes de centenas de milhares dos seus concidadãos, é fácil perceber a animosidade em relação ao antigo ditador.

Mas história deste Palácio do Saddam vai bem para além do sinistro personagem. Após a invasão do Iraque de 2003 e do consequente derrube do ditador, foi aqui que a coligação multinacional liderada pelos EUA montou a sua sede. Na prática, era a partir daqui que o país era governado, com as forças estrangeiras ao leme na tomada de decisões. Para além da sensação anti-natura que muitos iraquianos sentiam por ver o país e os seus intermináveis recursos controlados por poderes externos, este foi também um período de extrema insegurança no Iraque, marcado por múltiplos atentados terroristas, conflitos identitários e muita, muita pobreza. Um período em que o país ficou totalmente à deriva, e em que se instalou até um certo saudosismo de Saddam. Por todas estas razões, o país inteiro, de uma forma ou outra, tem razões para olhar para este palácio como um símbolo de opressão e ódio.

Talvez por isso, o impacto tenha sido ainda maior quando finalmente consegui entrar no complexo. Outrora interdito a qualquer pessoa não autorizada, o palácio está agora deixado ao abandono, salvo a rara ronda feita por 1 ou 2 militares. O interior foi agora tomado por grupos de crianças locais, que se divertem a percorrer as passagens secretas (entretanto expostas), a rabiscar as paredes e a trepar por todas as superfícies possíveis. Desde a queda de Saddam e da retirada americana, o palácio foi completamente delapidado de tudo o que de valor houvesse. Ouro, pratas, obras de arte. Porcelanas, mármores, madeiras. Candelabros e toda e qualquer peça de mobiliário. Para trás ficaram as paredes vandalizadas e os sinais da passagem do tempo. No entanto, ainda é possível admirar a traçada clássica e megalómana do edifício. Seja nos tectos monumentais a que ninguém consegue chegar, nos detalhes em Art Nouveau agora descascados ou nos varandins com vistas fabulosas, ora sobre a Babilónia a nascente, ora sobre o Rio Eufrates a poente, torna-se enternecedor ver a forma como os miúdos fazem o que querem neste espaço. Há mais de 20 anos, os seus pais seriam seriamente castigados (quiçá pior) se se atravessem sequer a aproximar-se deste sítio. Entretanto, estas crianças nasceram, mas viram a sua infância roubada pelas consequências nefastas de uma invasão que, 2 décadas volvidas, fica cada vez mais difícil de justificar.

Olho para o rosto destes miúdos, e percebo que provavelmente para eles não houve educação de qualidade, futeboladas com amigos, idas ao cinema ao fim-de-semana ou brincadeiras na rua. Ou mesmo que tenha havido, tudo terá acontecido na sombra de uma guerra, ou nos resquícios da mesma. Nas explosões e fugas, nas nuvens de fumo e no silêncio ensurdecedor do “dia seguinte”. E agora, aqui estão eles, a correr livremente pelo palácio de um ditador e pela sede das forças invasoras. Reparo na escadaria principal, numa zona do hall a que não chega a luz solar, e vejo que está completamente interdita. Talvez por razões de segurança, entre mim e os pisos superiores repousa uma autêntica barricada de arame farpado e outros escombros, com o intuito de bloquear a passagem. Mas curiosamente, e ao reparar que somos turistas, um militar aproxima-se e pede que o acompanhemos. Depois de abrir uma porta de ferro improvisada, mostra-me as traseiras da mesma escadaria, agora com o acesso desbloqueado, para que possa aceder aos pisos superiores. Aqui, nestes salões ainda mais recônditos e abandonados, o ar inebriante e tenebroso do palácio é inegável. Por momentos, no silêncio, chega até a roçar o assustador.

É uma experiência interessante. Tendo o espaço sido ocupado por forças da coligação, as paredes foram rabiscadas com as frases foleiras tão típicas do início deste século. Leio clássicos da minha infância, como “John loves Barbara” ou “Kevin was here”. Junto de todos estes rabiscos, estão as respectivas datas, sempre com os anos de 2003 ou 2004. Habituamo-nos a olhar para soldados como homens feitos e máquinas de matar, mas muitos deles, especialmente no rescaldo do 11 de Setembro, eram pouco mais que miúdos de 19 e 20 anos, claramente afundados numa realidade que não compreendiam. Nas suas mentes, a tomada do Iraque, e estas pichagens, eram também uma forma de libertação e de vingança face ao mais mortífero de todos os atentados terroristas alguma vez perpetrados. Mesmo que, mais tarde, a cúpula a que obedeciam e que representavam se tenha também ela tornado um símbolo de opressão para os Iraquianos.

Olho pela janela, e fico a ver o lendário Eufrates a seguir o seu rumo. O mesmo que viu o palácio a ser construído, a tirania opressiva de Saddam e a falsa “libertação” americana. Sinto que estou com os pés pousados num pequeno pedaço da história moderna, mas à minha volta está tudo de pantanas, destruído, pilhado, vandalizado e rabiscado. E que belo que assim seja. Um verdadeiro retrato visual de “liberdade”.

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